sábado, 13 de janeiro de 2018

As cidades pequenas ainda servem para alguma coisa?

Introdução


Há em Tomar verdades inatacáveis, à cabeça das quais surge esta: Tomarense que se respeita, quer seja de nascimento ou de adopção, sabe tudo. Faz sua a célebre afirmação de Cavaco Silva Nunca me engano e raramente tenho dúvidas, com uma pequena modificação -Nunca me engano e nunca tenho dúvidas. Nesta linha de pensamento, quando vem à discussão o problema da fuga da população, a opinião é praticamente unânime, encabeçada pelos autarcas que temos: É normal. Acontece em todos os concelhos, devido à migração para a faixa costeira.
Já aqui foi explicado antes que tal justificação é falsa, uma vez que, aqui mesmo ao nosso lado, no concelho de Ourém, a população vai aumentando, apesar de não se situar na faixa costeira. É a excepção que confirma a regra, contrapõem as luminárias locais, em geral dependentes da manjedoura pública e pouco dadas a debates sérios. Pois seja. Que o novo tarifário dos SMAS, que ontem aprovaram aflitos, lhes faça bom proveito. Vão aproveitando enquanto ainda é tempo.
O texto que segue é longo, chato, complexo e praticamente sem certezas. Engloba opiniões várias, entre as quais a do prémio Nobel, economista, escritor e jornalista, Paul Krugman. Inclui também um mapa da França, do qual constam os grandes movimentos da população gaulesa. Se está pouco habituado e/ou pouco apetrechado para raciocinar durante um bom bocado, o melhor é passar adiante, indo ler por exemplo o Correio da manhã. É geralmente mais confortável, pelo que cansa muito menos, dado que os seus textos são bem mais condensados.
Ia-me a esquecer de referir que se trata de uma tradução do trabalho jornalístico de François Pisani, publicado no Le Monde online de 11/01/2018, às 16H51.

As cidades pequenas ainda servem para alguma coisa?

"As cidades pequenas ainda servem para alguma coisa? Eis a terrível questão que acaba de ser levantada por Paul Krugman, prémio Nobel e cronista vedeta do New York Times, que desenvolve uma linha de pensamento que convém ter em conta, quanto mais não seja para melhor combater as respectivas implicações.
O texto em questão é uma espécie de comentário a um artigo d'Emily Badger no mesmo jornal, sobre a evolução das pequenas cidades nos Estados Unidos. Tomando entre outros o exemplo de S. Francisco, mostra como o desenvolvimento económico da cidade, antes do advento de Silicon Valley, dependia da construção naval. Mais precisamente da construção de navios de guerra. Para isso, S. Francisco trabalhava em relação com outras cidades, situadas um pouco por todo o lado no resto do pais, levando-as assim a beneficiar da sua própria prosperidade.

A economia do saber e as relações interurbanas

Actualmente porém, Google e Facebook são usadas pela maior parte dos habitantes do país, sem que todavia esse desenvolvimento os ajude directamente. Apple, por exemplo, que fabrica objectos, manda-os depois produzir alhures. geralmente na Ásia. O resultado é portanto o mesmo. E S. Francisco, como Nova Iorque, têm mais necessidade de relações com Shenzen, na China, ou Londres, em Inglaterra, do que com Tacoma, no Estado de Whashington, ou Detroit, no Michigan, ambas cidades americanas.
Após um período durante o qual prosperaram graças às relações com pequenas cidades do interior,  as grandes cidades prosperam agora tanto melhor quanto mais estiverem conectadas a outras cidades globais, distribuídas um pouco por todo o planeta, afirma a socióloga Saskia Sassen.
E tudo indica que não seja possível qualquer regresso ao passado, na medida em que, conforme explica um membro do conselho municipal de Chicago, falando sobre negócios globais, "a economia que sustentou as relações anteriores desapareceu, e não mostra qualquer sinal de regresso."
Para que servem afinal as cidades? Para aquilo que designamos como "efeito de aglomeração", ou seja as economias de transporte que se realizam quando as empresas de produção industrial estão próximas umas das outras. A redução de custos sobre os trajectos mais longos, contribui para que pesem menos, aquando da escolha dos locais de produção de mercadorias.
Nas cidades que funcionam graças a uma economia do conhecimento, "o saber constrói-se com o que aprendemos graças aos que nos rodeiam", explica Edouard Glaeser, professor em Harvard e autor do livro O triunfo da cidade. O que as cidades ainda permitem reduzir é o tempo necessário para que as pessoas se desloquem. Um tempo cujo valor aumenta com a produtividade dos seus utilizadores: "Mesmo se as alterações na tecnologia dos transportes permitem localizar a produção de bens em qualquer lugar do mundo, haverá sempre vantagens para os clusters que minimizem os custos de deslocação das pessoas."
O efeito de aglomeração é por conseguinte mais forte na economia do conhecimento, o que explica a importância das grandes urbanizações. Quanto mais uma metrópole está directamente ligada por avião com outras metrópoles do mundo, mais cresce e se desenvolve. Um raciocínio que se aplica ao crescimento das cidades, na maior parte dos países com uma economia já maioritariamente apoiada no conhecimento.

As pequenas cidades perdem poder

Regressemos agora às "pequenas cidades". Seja qual for a dimensão considerada, que varia de país para país, todas têm problemas para beneficiar do dinamismo das grandes metrópoles. E o problema não é só económico. Segundo Greg Spencer, um investigador da Universidade de Toronto (Canadá), citado por Emily Badger "as pequenas cidades perdem não só poder, mas também as suas conexões com os centros de decisão", que são as metrópoles.
Nada de tudo isto é de molde a tranquilizar, mas constitui pelo menos um princípio de explicação que parece lógica. Calma, mais devagar, pede Krugman, explicitando que as ideias que avança "são diferentes das de Badger, mas não necessariamente contraditórias".  Segundo afirma, as cidades começaram a ter um papel importante na economia agrícola de antanho, constituindo pontos de encontro para agricultores dispersos.




Este quadro, copiado do Le Monde, mostra a evolução populacional das áreas urbanas francesas, entre 2006 e 2013, em percentagem. O quadro de cores, em cima à esquerda, não necessita de tradução.
Cai assim por terra o estafado argumento segundo o qual Tomar perde população devido à migração para a faixa costeira, que se verifica em todo o país. Como se pode ver, em França a população migra para os grandes centros urbanos, as metrópoles, que por sinal nem ficam na faixa costeira no que concerne à principais, excepto Marselha. Paris, Lyon, Toulouse, Estrasburgo e Lille ficam mesmo no interior. Em contrapartida, Nice, um grande centro turístico, fica na costa, mas até perdeu entre 5% e 12% da população. Em Portugal as coisas são diferentes? Ou trata-se apenas de constatar que, por razões históricas, Lisboa e Porto, as duas maiores cidades portuguesas, que são apenas médias em termos europeus, ficam na costa?

Processo aleatório 

A importância industrial que algumas conseguiram depois foi, em muitos casos, simples produto do acaso. Por exemplo Rochester, no Estado de Nova Iorque, começou por se desenvolver como centro hortícola, aproveitando os cursos de água da região. Tornou-se mais tarde sede da Kodak e da Xerox, graças a um imigrante alemão que ali se instalou em 1853, para fabricar monóculos, transformando-se assim num sítio onde era possível encontrar competências profissionais úteis em óptica.
De facto, "se recuarmos o suficiente, é lógico encarar o destino das cidades como um processo aleatório de vitórias e de derrotas, no qual as pequenas cidades são confrontadas com uma probabilidade relativamente elevada de virem a padecer da "ruína do jogador". Que quer isso dizer? Que, de acordo com a teoria dos jogos, um jogador que disponha de um número limitado de fichas (tal como uma cidade pequena dispõe de um número limitado de recursos), e jogue indefinidamente contra um outro jogador dispondo de fichas sem limite,  (ou pelo menos com muito mais fichas, como uma metrópole global), acabará inevitavelmente arruinado.

Contingência histórica

Dito de outra maneira: "Na economia moderna, que se separou da terra, qualquer pequena cidade só existe graças a uma contingência histórica, que mais tarde ou mais cedo deixará de ser pertinente." Uma tal evolução depende pouco da globalização, a qual apenas contribui para acelerar o movimento, acrescenta Krugman.
O problema é que esta "contingência histórica" é composta por múltiplas pequenas histórias humanas, de identidade territorial, de tecido social infinitamente imbricado. Krugman tem consciência disso -situa-se mesmo do lado do liberalismo social e  moderno- bem como dos problemas que isso coloca: "Há sem dúvida custos sociais implicados na implosão das pequenas cidades, de tal forma que há interesse em olhar para as políticas de desenvolvimento regional que tentem preservar a viabilidade de tais urbes. Mas vai ser uma luta difícil."

Um duplo drama social

A urbanização crescente e acelerada apresenta-nos portanto dois enormes problemas sociais: Retira às pequenas cidades uma boa parte da sua razão de ser e dos recursos para prosperarem, criando ao mesmo tempo disparidades sociais crescentes no seu próprio seio (e torna-as mais perceptíveis).
Dito de forma clara, as pequenas cidades deixaram de ter, segundo os estudos mencionados por Emily Badger e Paul Krugman, quaisquer razões para existir, falando em termos económicos. É sem dúvida por isso que temos de decidir, de uma vez por todas, se queremos preservar o que tais urbes representam em termos de qualidade de vida.
Num vídeo publicado pelo Le Monde, Michel Lussault, director da Escola urbana de Lyon, e Nadine Cattan, investigadora no CNRS (Centro Nacional de Investigação Científica), mostram à evidência que as cidades mais pequenas podem ter um futuro, se desenvolverem projectos próprios e souberem encontrar novos tipos de relacionamento com as metrópoles. Podem portanto "inventar-se um futuro". Para isso, tem de agir para além do que dizem os economistas. Mas não devem, contudo, ignorar as lógicas em curso, se querem ter hipóteses de resolver os problemas e continuar a viver de verdade."

Francis Pisani, Le Monde online, 11/01/2018, 16H51
Tradução e adaptação de António Rebelo. UPARISVIII

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